ARTIGO DE OPINIÃO: Humor de Salvação

16/04/2025 18:30

A propósito de uma capa em que apareceu uma imagem – inesperada – de Eça em vez de uma imagem – expectável – de Camilo, pus-me a pensar que há “trocas” que fazem todo o sentido. Sentido de humor, para ser mais precisa. Na verdade, não só as relações entre ambos não eram as mais amistosas – o que torna deveras divertidas as palavras «Camilo continua…» quando as imaginamos ditas por Eça – como é sobretudo o extraordinário sentido de humor de ambos o traço que os aproxima, ainda que a genialidade de cada um dos autores encontre diferentes e característicos modos de expressão.

Como nada na vida existe sem o seu contrário, até para o Amor de Perdição há um Amor de Salvação. Sem esquecer os amores e os desamores da juventude, as famílias mais ou menos desavindas, as cartas, as mortes prematuras e os conventos, em Amor de Salvação o humor consegue o papel principal, roubando o protagonismo às habituais e copiosas lágrimas de dor. Não sendo possível, por agora, elencar todos os momentos em que o humor se destaca – ou todos os momentos que se destacam por causa do humor – apresento, em jeito de comedido aperitivo, apenas os seguintes. 

O primeiro envolve duas senhoras rivais em matéria de solidariedade social – D. Elvira e D. Benedita – que disputavam a atenção dos mass media da altura, a saber: dois jornais da terra. Ora, uma vez que nenhum deles, ao contrário do que acontecera com a inimiga, se tinha ainda referido a D. Elvira como «virtuosa», resolveu esta fundar, com as suas economias, «um abrigo» com capacidade para vinte e quatro «velhos e velhas desamparados», notícia que, mal chegada às gazetas, lhe deu logo honra de primeira página e direito a progressão imediata na escala dos epítetos com um «virtuosíssima» que desarmava qualquer titubeante adjetivo no grau normal. D. Benedita, «ciosa da popularidade que a sua rival vingara», não deixou os seus créditos por mãos alheias e «delineia um outro asilo com capacidade para quarenta e oito velhos.», o que lhe trouxe um ligeiro contratempo, felizmente logo resolvido com a mobilização da população – já se sabe que a união faz a força – como se percebe: «Como na terra não havia tanto velho, alguns marmanjolas de trinta anos, inimigos do trabalho, ou encanecidos nas cadeias, apresentaram certidão de idade de sessenta, e esconderam a sua bargantice sob as asas caritativas de D. Benedita, a quem as gazetas chamavam a santa!» 

O segundo consiste na aplicação arrojada da máxima «A necessidade aguça o engenho», uma vez que, para não deixar que as sólidas paredes do convento das Ursulinas o afastassem da sua jovem amada, Alfredo decidiu que se faria passar por sua criada, plano que muito agradou a Libana: «Não há nada mais fácil. O meu Alfredo tem cara de mulher e não tem ainda barba. Diz ele que se veste à moda das raparigas da minha terra, que me procura com uma carta fingida de minha mãe a pedir-me que receba a portadora como criada (…)». Infelizmente, a «vila era pequena e de soalheiro», e logo se espalhou a notícia de que se estavam «fazendo roupinhas e saiotes, e outros atafais de mulher, afeiçoados ao corpo de Alfredo». Lá se foi o plano por água abaixo… Em articulação com as autoridades – lá está a importância do trabalho em rede – os irmãos de Libana apanharam o ardente apaixonado mesmo à porta das Ursulinas, «vestido de camponesa transmontana, e dali, entre baionetas e escoltado de rapazio, percorreu todas as estações judiciárias desde o regedor às carícias do carcereiro.»

Eu sei. Isto é de ler e chorar por mais. Eu até contava já o episódio do Eleutério Romão dos Santos, mas se até o seu tio padre Hilário desistiu de tentar que o rapaz conseguisse ler palavras com três sílabas, impedido que estava de «arejar o cérebro do sobrinho por uma fresta aberta a machado», por aqui me fico, até porque «Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte… ou é tolo ou não tem arte». 

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