Independentemente da forma e do teor – mais religioso e centrado na adoração das figuras sagradas ou mais laico e memorialístico, tendência para a qual concorrem as saudades da infância ou da família – o Natal é tema recorrente na nossa literatura ao longo dos séculos e nessa fortuna encontrarão inspiração os vindouros, porque os escritores e os poetas dão continuidade ao mundo, ainda que com ele – tantas vezes – não se identifiquem e o queiram mudar.
É por isso que, se o Natal é entendido como tempo e lugar de amor e felicidade, também, em muitos textos, a quadra natalícia serve de moldura à crítica de costumes ou à denúncia das desigualdades sociais, mostrando que, ao contrário do sol quando nasce, o Natal não é para todos.
É o que acontece no poema Noite de Natal, de António Feijó, que abre com o verso «Bairro elegante – e que miséria!» – e que é impossível, por várias razões, não relacionar com Num bairro moderno, de Cesário Verde – para nos contar a história de um pequenito que «adormeceu,/Morto de frio e de cansaço,/As mãos no seio, erguido o braço/Sobre os jornais que não vendeu.» À semelhança do que acontece em A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, que vendera mais fósforos do que os jornais vendidos pelo pequeno ardina – nenhum – e que só encontra conforto nos braços sonhados da avó – teve da menina mais compaixão a morte do que a vida – também o rapazito só no sonho encontra a esperança que a realidade lhe nega: «E o pequenito extasiado,/Naquele sonho iluminado/De tantas coisas imortais/ – No céu azul, pobre criança! – Pensa talvez, cheio de esperança,/Vender melhor os seus jornais…»
No entanto, se a oposição entre a dura realidade e o mundo resplandecente do sonho – da qual resulta, por parte de quem não a vive, a consciência da miséria que atinge os mais desfavorecidos e desprotegidos – pode funcionar como uma estratégia de denúncia das desigualdades sociais, pode também perpetuá-las, na medida em que o sentimento de piedade a que o texto apela – chamando a noite e o frio para agudizar o sofrimento e a pobreza das duas crianças – separa mais as classes sociais do que as aproxima, uma vez que conforta mais quem dá do que quem precisa do que lhe é dado. Esta piedade “sazonal” traz-me à memória o texto Os pobrezinhos, de Armindo Mendes de Carvalho, brilhantemente declamado por Mário Viegas, que mostra, com contundente ironia, a utilidade da sua existência – «Os pobrezinhos/tão engraçados/pedem esmolinha/com mil cuidados – até como tema de composição infantil, parodiando Os ninhos, texto de Afonso Lopes Vieira: «Os passarinhos/tão engraçados/fazem os ninhos/com mil cuidados.»
No Natal, também me lembro sempre daquele excerto de As Mulherzinhas, livro que li inúmeras vezes enquanto criança, em que a família March – a mãe e as quatro filhas – abdicou do seu pequeno-almoço de Natal para o oferecer a uma família muito pobre, que morria de fome. Não foi tanto o gesto das irmãs March que me tocou, embora o tivesse considerado digno de admiração, foi mais a consciência das dificílimas condições em que viviam os Hummels que me perturbou. As irmãs March voltaram para casa, sentindo-se felizes com a sua oferta caridosa – tanto mais que elas mesmas, como todos sabemos, não viviam desafogadas – mas continuei a pensar na outra mãe e nos seus sete filhos e no pequeno-almoço que não teriam se não fosse Natal. É que, afinal, o Natal não é todos os dias, a fome sim.
Elisabete Bárbara