Um novo ano, um novo capítulo. Se pensarmos na nossa vida como um livro, na medida em todas as vidas contam uma história, pensamos também nos livros que lemos e que fazem parte dessa história. Recordamos personagens, ainda que nem sempre nos lembremos da altura em que nos foram apresentadas, recordamos leituras, ainda que nem sempre tenhamos ainda a certeza dos títulos ou dos nomes dos seus autores, recordamos o prazer ou o desagrado que nos provocaram. Trazemos palavras agarradas à memória, transformamos em aprendizagem o que não nos aconteceu, reconhecemos paisagens que nos estranham. A verdade é que todos nós temos uma relação com os livros – mais ou menos intensa, mais ou menos feliz, mais ou menos duradoura – e que essa relação provoca em cada um de nós memórias e reflexões.
Em O Vício dos Livros, publicado em 2021, Afonso Cruz faz uma viagem pelos lugares que a leitura foi habitando ao longo dos seus dias, partilhando connosco, em breves capítulos e maravilhosas ilustrações, também da sua autoria, uma série de curiosidades e de reflexões sobre os livros, bem como alguns episódios da sua vida em que a sua presença se revelou marcante. É assim que nos fala da primeira vez em que conheceu um «esquifobético»; da origem da «inexplicável beleza dos velhos»; do facto de, quando adolescente, apanhar o autocarro que levava mais tempo a chegar à escola para poder «passar mais tempo a ler» na viagem; da razão pela qual foi ao estabelecimento prisional de Santa Cruz do Bispo e do motivo que o levou a sair «da prisão incrédulo»; da biblioteca pessoal de um amigo, cujo perfeccionismo em termos de altura e alinhamento das lombadas determinou que se livrasse dos volumes sem respeito pela estética da «linha recta paralela à prateleira que muitos bibliófilos gostam de ver nas suas estantes»; e do livro que o avô lhe escreveu não sendo o seu autor.
A par destes retalhos da vida de um leitor – e agora viria a propósito lembrar Fernando Namora e o seu romance de 1949 – outras páginas se abrem e outros nomes de autores e de obras se juntam à conversa, porque, se palavra puxa palavra, livro puxa livro; por isso Afonso Cruz, ao longo destes trinta e um breves capítulos, vai recuperando referências históricas, geográficas e literárias como pontos de interesse a visitar ao longo da viagem ao mundo dos livros e da leitura, que faz não só como passageiro, mas como guia, porque o vício que tem – felizmente – os outros vicia.
P.S. Parar na página 76: «Na biblioteca do faraó Ramsés II estava escrito por cima da porta de entrada: «Casa para terapia da alma.» É o mais antigo mote bibliotecário.»
Elisabete Bárbara