ARTIGO DE OPINIÃO: Outro Natal.

04/12/2024 18:30

Todos os anos, na noite de vinte e quatro de dezembro, comiam na cozinha, sentados nuns banquinhos baixos, colocados em frente da lareira. A tigela da sopa de Natal fumegava entre as mãos. O refogado era feito com o azeite do ano, cebola e alho picados, bacalhau desfiado grosseiramente e couves colhidas depois das noites de geada que as adocicavam. Duas cabeças de pão da Silvã, redondas e brancas, já migadas num alguidar de barro com um pouco de água da fervura, eram acrescentadas ao caldo.

As crianças deixavam os sapatinhos junto à lareira, depois da ceia, ao calor da cinza adormecida. Faziam os pedidos, em voz alta, ao Menino Jesus. Não variavam muito de ano para ano: meias e cuecas. Às vezes, como que por milagre das alturas, eram prendadas com chocolates pequeninos, embrulhados em pratas de várias cores, que reluzentes enchiam de brilho os olhos mal abertos, quando se levantavam de manhã cedinho para abrir as prendinhas, antes da missa de dia de Natal, na Vila. 

Iam a pé agarrados à mãe que os segurava para que não caíssem nos caminhos gelados. Chegavam à igreja velha. De abraços abertos, já no altar, estava o novo pároco. Alto, sereno, voz timbrada, gestos largos, mãos longas erguidas ao alto, para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita. Entoavam cânticos em coro ao Menino que acabara de nascer, mais uma vez, todos os anos: «O Menino está dormindo um sono de amor profundo/ Os anjos lhe estão cantando/ É o Salvador do mundo!» O teclado do órgão, com fole, agitava-se sob os pés e as mãos ritmados do organista, ainda jovem, que acompanhava, com olhar cúmplice, as ordens do senhor vigário lá do altar. 

 No final da missa, faziam uma fila e subiam até ao altar onde estava um presépio grande feito com musgo. No cimo, uma cabana de madeira coberta de caruma, à frente do pinheiro colhido na mata. Lá estava ele altaneiro, enfeitado com uma grande estrela de prata, para iluminar os caminhos, e muitos anjinhos de papel de lustro, feitos na catequese. Pastores e ovelhas percorriam os montes bordados de pedrinhas e de atalhos desenhados com farinha branquinha de neve. Os reis, trajados a rigor, estavam quase a chegar à Lapinha de Belém. Tinham nomes bonitos com sons doces: Baltazar, Melchior e Gaspar. Traziam ouro, incenso e mirra. Cantando louvores ao Menino, lá iam beijar-lhe os pés ou as mãos, todo despidinho, coitadinho, cheiinho de frio.

Agora quase nada disso importa. Um mês ou mais antes do Natal já as montras da cidade se iluminam, já a passadeira vermelha atravessa as ruas, já a música natalícia se evade dos altifalantes, já a azáfama da compra dos presentes de Natal agita os espaços comerciais a ver quem vende por melhor preço muitas coisas supérfluas, mas urgentes. O grande dia não tarda e há que o comemorar a preceito, com prendinhas e lacinhos para todos os mais chegados e os menos chegados. 

Nos espaços sofisticadamente decorados, um velho bonacheirão de vestes vermelhas e barbas brancas pousa sentado num trono, com o regaço pronto para acolher as crianças. As filas para o cumprimentarem enchem-se de gritos infantis.

O menino Jesus observa a turba ruidosa e afasta-se.  Só regressará no Dia de Natal ao coração dos homens de boa vontade.

Ana Albuquerque

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