ARTIGO DE OPINIÃO: A (verdadeira) Ode Triunfal

13/11/2024 18:30

Numa das últimas aulas, depois de nos termos despedido de Ricardo Reis, que saiu da sala sem pestanejar e sequer olhar para trás – não viesse a cair novamente por terra a coerência entre palavras e gestos, já bem lhe bastou a inclemência de Saramago – apresentei Álvaro de Campos aos meus alunos, que eles já conheciam de nome, pedindo-lhes que ouvissem, de olhos fechados, a minha leitura da sua Ode Triunfal, que não teve tanto de triunfal como eu gostaria por estar terrivelmente constipada e o congestionamento nasal não ser favorável à limpidez vocálica e à euforia do ritmo. 

Terminada a longa leitura e finalmente abertos os olhos, assim como as cúmplices persianas, quis saber o que tinham percebido do poema. Se tivessem de escolher três ou quatro palavras para o caracterizar, quais seriam? Muitos falaram em raiva, exagero e delírio, outros em tristeza e saudade, alguns em ruído e movimento, todos em intensidade e velocidade. Uma aluna esclareceu que tinha sentido raiva no poema, mas que ela não tinha sentido raiva ao ouvi-lo. A raiva é do poema, não é minha. Também acontece assim na vida, não precisamos de sentir o que o outro sente para o compreendermos. Muito bem, mais alguém quer falar? A esta pergunta, respondeu um aluno que, até então, tinha estado tão quieto quanto calado: Professora, eu arrepiei-me ao ouvir o poema. Arrepiei-me.

Deu o toque para a saída, metalicamente insensível à beleza do momento. Um aluno que não só se arrepia como confessa, com a voz embargada e o olhar humedecido, esse arrepio a toda a turma. Os alunos saíram, Até amanhã, Professora, as melhoras, e eu fechei o livro e pensei É isto, a Literatura é esta capacidade de arrepiar um jovem aluno, que está de olhos fechados numa sala de aula em absoluto silêncio a ouvir uma professora fanhosa dizer «Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!/ Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!/ Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!»…

Elisabete Bárbara

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