Nas aulas de Português do 12.º ano, escolhemos para ler com os nossos alunos um dos nossos grandes poetas contemporâneos: Miguel Torga.
De seu nome de batismo, Adolfo Correia da Rocha, um transmontano de gema que, depois de uma infância e juventude de vicissitudes e lutas pela sobrevivência, signo de todos os que nasceram num Portugal profundo, no seio de famílias pobres que trabalhavam a aridez dos montes rochosos, conseguiu concluir, já adulto, o curso de Medicina na Universidade de Coimbra e produzir, paralelamente, uma vasta obra literária.
O seu labor nas letras vai da prosa, os célebres contos, relatos da vida da montanha, às peças de teatro, também elas espelho das dificuldades de muitas vidas dos que foi encontrando e ajudando no seu caminho, ao célebre e incontornável Diário que escreveu quase até ao fim da vida, um testemunho do seu tempo e das contrariedades de um país inteiro, de carne e osso, até à sua obra poética, que ocupa um patamar de grande relevo na poesia de todos os tempos.
Fomos à casa do Poeta. Fomos e viemos com uma certeza: os poetas não morrem. Ficam nas paredes, nos interstícios das telhas, nas frinchas do soalho ou das tijoleiras, nas plantas, nos arbustos, na nora do poço, no chão do quintal, no ar que se respira…
Fomos ao bonito e moderno Espaço Miguel Torga, desenhado por um dos nossos melhores arquitetos da modernidade: Souto Moura. Um espaço amplo, rasgado no meio de uma vinha, muito perto da casa, em S. Martinho de Anta. No centro, uma grande exposição da vida e obra de uma vida tão vivida num tempo tão sofrido, reveladora também do seu contributo para a conquista da liberdade de um país tão nosso.
Subimos à Serra até à Capela de Nossa Senhora da Azinheira, onde encontrámos ecos do velho Garrincha que, não tendo onde pernoitar, ali passou a noite de Natal com a Senhora e o Menino. Olhámos, ao longe, o Marão, os penedos cobertos de giestas e urzes, as célebres torgas onde foi buscar o seu nome literário. Aspirámos o cheiro a alecrim e a rosmaninho, num dia de sol magnífico que nos acolheu depois de dias de tempestade por todo o país.
Dali partimos para o Douro vinhateiro, percorrendo o tal «Reino Maravilhoso» que o poeta eternizou. Subimos a S. Leonardo de Galafura e, em êxtase, observámos o rio lá do alto e apreciámos a graça divina de uma natureza, Património da Humanidade, trabalhada de forma titânica por homens ímpares.
Nem o Santo, Leonardo de seu nome, queria sair daquele lugar e retardou o mais que pôde a sua viagem até ao «cais divino». O Céu não seria capaz de igualar aquele paraíso terrestre.
Descemos as curvas pelas estradas estreitas até ao Pinhão e pudemos apreciar os vinhedos em socalcos numa construção humana inigualável de um e de outro lado do rio…
Na obra de Miguel Torga perpassa um amor inexcedível pela sua terra, pelo seu país, um apego poucas vezes igualado na obra de outros escritores portugueses.
De toda a sua vasta produção literária, a sua poesia é a que mais aprecio.
Miguel Torga, ou melhor, o cidadão e o médico Adolfo Correia da Rocha, um homem alto, com um ar austero, que víamos nas ruas da baixa de Coimbra nos nossos anos oitenta e noventa, morreu em 1995, mas o Poeta, o ser humano, desnudado e íntimo, continuará a revelar-nos, nos seus versos, a nossa eterna fragilidade, a nossa inteira humanidade, as nossas contradições internas, tão nossas, tão nossas…
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal Céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Ana Albuquerque