Os Lusíadas glorificam e condenam, elogiam e criticam. São a euforia e a disforia e, nessa medida, são uma epopeia que contém em si a sua própria negação. Curiosa esta ideia, a de uma epopeia antiépica, como uma Máquina do Mundo tão perfeita que compreenda também em si o descontentamento e o desconcerto que se conjuram para a destruir.
O descontentamento chega-nos, sobretudo, pela voz do Poeta, e é nas suas lamentações que o sentimos pulsar como a verdade autobiográfica que o leva, no último Canto do seu Poema, a dizer «Nô mais, Musa, nô mais» (X.145), recusando continuar o canto.
É com uma formulação semelhante que Camões termina a sua Canção X – décimo Canto, décima Canção – dizendo, para terminar um texto que parece querer ser entendido como autobiográfico e não resultado poético da imaginação, «Nô mais, Canção, nô mais», recusando continuar a canção.
No entanto, se podemos fazer corresponder Musa a Canção, ou Canção a Musa, as razões que justificam a dupla negação em ambas as ocorrências são diferentes: em Os Lusíadas, o Poeta explica que o seu desânimo decorre de «Cantar a gente surda e endurecida»; na Canção X, o Poeta explica que, estando a falar de si, poderiam passar mil anos sem que desse tempo se apercebesse. Com esta explicação, justifica a longa extensão da canção, corroborada pelos versos «E se acaso/te culparem de larga e de pesada, /não pode ser (lhe dize) limitada/a água do mar em tão pequeno vaso.»
É assim a vida de Camões a «água do mar», contida nos treze vasos das estâncias que compõem esta décima canção. Espreitando o conteúdo desses vasos, neles encontramos várias referências, mais ou menos explícitas, à obra do Poeta, mostrando que essa água é, em grande parte, composta pelas suas próprias composições. É deste modo que, por exemplo, os elementos «o doce e piadoso/mover d’olhos» e «ervas mágicas que o Céu/me fez beber» remetem de imediato para o soneto Um mover d’olhos, brando e piadoso; que o verso «noutro ser me tiveram transformado» aponta para Transforma-se o amador na cousa amada; que a expressão «Enfim, não houve transe de fortuna» evoca «Enfim, não houve forte Capitão», em Os Lusíadas (Canto V, estância 97); e que «o confuso/regimento do mundo» replica «do confuso mundo o regimento» do soneto Verdade, Amor, Razão, Merecimento.
Ora, se é esta a composição da «água do mar» da vida de Camões, talvez possamos interpretar os versos que rematam a Canção X – «explicando/puras verdades já por mim passadas. / Oxalá foram fábulas sonhadas!» – não tanto como uma prova da natureza autobiográfica do poema, mas como prova de que são os textos de Camões a sua biografia.
Camões não mente: todos os textos que escreveu – e que não cabem em «pequeno vaso» – são «puras verdades» por si vividas, porque por si criadas. Não há maior verdade biográfica do que a verdade poética da criação.