ARTIGO DE OPINIÃO: Outra crónica de uma morte anunciada

21/03/2023 18:18

Às personagens escapam os indícios que um leitor, se for atento, não deixa escapar. Na verdade, ler é descobrir, e nesta descoberta se confirma o exercício de interpretação que o texto propõe ao leitor, desafiando a sua sensibilidade e a sua perspicácia. Assim, na posse de informação de que as personagens não dispõem, consegue o leitor, desse lugar privilegiado onde o narrador o coloca e de onde consegue ler os sinais que vão pontilhando a história, estabelecer ligações e descortinar significados, prevendo acontecimentos e antecipando desfechos.

É numa «sombria tarde de Dezembro, de grande chuva» que Pedro da Maia volta para os braços do pai, após a fuga de Maria com Tancredo. Por respeito ao seu sofrimento, os criados movem-se «em pontas de pés, com a lentidão de uma casa onde há morte.» Na sala de jantar, «rosas de Inverno esfolhavam-se num vaso do Japão». Pedro vai para a varanda do quarto, onde se deixa ficar «com a cabeça à chuva, atraído por aquela treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo». Morde «o charuto apagado que desde a tarde conservava na mão». «Uma brasa morria no fogão». Mais tarde, já depois das dez horas, quando Afonso sobe ao quarto do filho, encontra-o a escrever «à luz de duas velas», e Pedro diz-lhe que está a escrever a Vilaça, perguntando-lhe «É número 32 a casa dele, não é?» Depois, já «A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo – quando de repente um tiro atroou a casa»; subindo ao quarto do filho, encontra-o «morto, apertando uma pistola na mão».

Não é por acaso que o regresso de Pedro à casa paterna acontece em dezembro, numa tarde sombria dos seus já curtos dias, associando o final do ano – e de um ciclo – ao final do dia e à escuridão que traz consigo. Não é por acaso que o leitor é convidado a dirigir o olhar para as rosas que se esfolham, vendo nelas a juventude perdida de Pedro ou a nudez da verdade que lhe foi revelada, nem é por acaso que também é chamado a olhar, da varanda, para a treva da quinta como uma sepultura cavada pela noite. Tal como a tarde desce em direção à noite, ao encontro da escuridão, também Pedro se sente atraído por ela e tentado a deixar-se cair nos seus braços. Não é por acaso que o charuto está apagado, nem que a brasa esmorece no fogão; também a vontade de viver se apagou e a brasa moribunda não volta ao fogo que a incendiou. Quanto ao número da casa, o 32, vejo nele a representação das três gerações da família – Afonso, Pedro e Carlos – que se vê «agora reduzida a dois varões», Afonso e Carlos, e talvez por isso também as duas velas.

Ao contrário de Afonso que, apesar do desassossego em que passa essa noite de chuva intensa, é assim surpreendido pelo suicídio de Pedro, o leitor atento de Os Maias já o esperava. 

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