Propositadamente, nestas férias, levei comigo o livro de Sophia: O Cavaleiro da Dinamarca. Esta foi a companhia escolhida para reler durante a viagem de avião. Li muitas vezes este livro com os meus alunos do sétimo ano de escolaridade. Emocionava-me cada vez que lia a história de Vanina e de Guidobaldo, em Veneza.
O cavaleiro de regresso a casa, depois de ter visitado Jerusalém onde passou o Natal, visitou várias cidades italianas. Nessa viagem, conheceu um mercador veneziano que o convidou a visitar a sua cidade: “Veneza, construída à beira do mar Adriático sobre pequenas ilhas e sobre estacas, era nesse tempo uma das cidades mais poderosas do mundo. Ali tudo foi espanto para o dinamarquês. As ruas eram canais onde deslizavam barcos finos e escuros. Os palácios cresciam das águas, que refletiam os mármores, as pinturas, as colunas.”
Chegámos de barco, pois de outro modo era impossível. Do meio das águas verdes, surgiu, ao longe, uma cidade “aérea e leve”. Desembarcámos e logo uma multidão animada se movimentava sob um sol escaldante de agosto. Muitas barraquinhas ofereciam aos turistas a infinita possibilidade de compras. Reparei que havia muitos chapéus de todas as cores e feitios à espera dos mais incautos. Seguimos as ruas até ao encontro com o guia e fomos posando à beira das pontes sobre os canais.
No centro da cidade, assistimos a uma eclosão de beleza. A riqueza doirada dos palácios, o rendilhado das suas frontes, a brancura das suas colunas de mármore, as alturas das suas torres fascinam-nos. Uma cidade fantástica, quase irreal, feita de miragens como nos contos de fadas. As esplanadas dos antigos cafés da Praça de S. Marcos estavam cheias de gente bonita. A música convidava ao descanso e ao sonho.
Pelas ruelas muito estreitas chegava-se a pequenos largos e pontes. Os pombos descansavam sobre as estátuas. Um dos palácios cor-de-rosa fez-me lembrar a história de amor de Vanina e Guidobaldo. Afinal, também George Clooney o tinha escolhido para o seu casamento, informou o italiano, falando português com um sotaque brasileiro.
Jacopo Orso era o tutor de uma menina órfã de uma beleza invulgar. Ainda criança, prometeu-a em casamento a Arrigo, um homem mais velho e rico como ele. Aos dezoito anos, Vanina recusou esta união. Considerava o homem feio e maçador. Orso fechou-a em casa e não a deixava sair senão em sua companhia, ao domingo para ir à missa. De dia, a prisioneira bordava, espiada constantemente pelas suas aias. Mas quando o palácio adormecia, abria a janela do seu quarto, debruçava-se na varanda e penteava calmamente os seus longos cabelos loiros, sedosos e perfumados. Os rapazes vinham espreitá-la sob o luar de prata refletido nas águas. Não ousavam aproximar-se, pois temiam as consequências.
Ora, um dia, chegou a Veneza o capitão de um navio que se chamava Guidobaldo. Era um homem de uma beleza ímpar. De noite, ao passear de gôndola por um dos muitos canais, sentiu no ar um maravilhoso perfume, aproximou-se do palácio e viu Vanina pentear os cabelos. Não hesitou em oferecer-lhe um pente de oiro que depôs num cesto que a jovem lhe atirou atado por uma fita. Todas as noites, a cena se repetia, até que o marinheiro teve coragem de falar com o tutor que o ameaçou e lhe deu poucas horas para abandonar a cidade. Sete dos seus esbirros matá-lo-iam com sete punhais.
Nessa mesma noite, Vanina atirou-lhe o mesmo cesto. Desta vez, Guidobaldo não depôs nele o pente, mas uma escada de seda que, depois de desenrolada e presa à balaustrada de mármore, serviu para que a jovem por ela descesse até à gôndola. O navegador cobriu-a com a sua capa e o barco estreito sumiu-se até ao cais onde o navio os aguardava. Depois de casarem na Capela dos Marinheiros, embarcaram e desapareceram para sempre.
Não vale a pena dizer que foram felizes.
Esta cidade inebria, sobretudo à noite, quando no cais já despido de gente nos aguarda um barco. Afastamo-nos como quem desperta de um sonho. As luzes vão ficando para trás. Fazemos um filme com todos aqueles palácios antes que se esfumem na distância. Sorvemos uma brisa leve, e entoamos, no silêncio entrecortado pelo barulho das ondas que se agitam ao passarem outras embarcações, uma velha canção de Aznavour: “Que c’est triste Venise, au temps des amours morts. Que c’est triste Venise, quando on ne s’ aime plus.”
Havemos de voltar a Veneza!
Ana Albuquerque