Gosto do outono. Dos sabores e das cores. Das flores. Mesmo dos crisântemos e das carvalhinhas nos cemitérios. Das velas que iluminam as noites e as almas. Nostalgia. Saudade. Dor também. E gratidão por termos tido na nossa vida outras vidas que nos deram a nossa. Tempos distantes. Memórias. Guardo as boas. As outras tento arquivá-las lacradas num baú de madeira no sótão que já não tenho.
Cheira a marmelada acabada de fazer na casa antiga da aldeia. Agora, na da cidade, cheira a marmelo na sala. Trouxe o outono nos dióspiros e nas romãs que pus num cesto de vime, feito por outras mãos noutros dias. Apanhei umas folhas secas do caminho velho e misturei-as com os frutos. Uns ouriços ainda com castanhas. Umas nozes, umas avelãs. Requeijão e doce de abóbora nuns pratos antigos sobre a toalha de estopa.
Este ritual de trazer para casa o outono repete-se em cada novembro. Afinal, também eu nasci em novembro. Era sexta-feira à tardinha, quase noite.
Eu gosto do anoitecer. Quando o sol ilumina pouco e mal aquece os dias. Gosto do frio no rosto e o corpo bem agasalhado. E da jeropiga nos cálices de vidro junto à lareira. O cesto de lenha. As pinhas. O crepitar das cavacas de carvalho e de oliveira. Os passos na escada de madeira. O ranger da porta. A chuva miudinha na janela. Os teus olhos. Distantes, mas presentes. As tuas mãos ausentes, mas aqui.
Gosto do outono. Deste lusco-fusco. Deste som das folhas sob as rodas do carro. Do carro de bois da infância. Lá longe. Misturam-se as luzes de agora com as de outrora. O candeeiro de petróleo sobre a chaminé, as sombras projetadas nas paredes. O cão que ladra lá fora ao vento que passa.
Gosto do outono. Das azeitonas sobre a terra húmida e fria. As mãos gretadas da mãe e da avó velhinha curvada sobre as ervas que as tapam. Do cheiro do azeite novo.
Do casaco quentinho que sai do armário antigo. Do orvalho das manhãs. Dos vidros embaciados. Do céu com nuvens carregadas. Dos raios e trovões que abalam as nascentes. Das noites sem luar. Da escuridão do xaile preto sobre as costas. Da samarra escura do rapaz que andava comigo na escola. Lá longe, depois do cruzamento. O cheiro dos eucaliptos. A caruma que cai. Os míscaros escondidos sob o folhado. A algazarra da descoberta. As batidas aos lobos maus. A menina do capuchinho vermelho que leva bolinhos à avó que vive na floresta. A infância. A magia que só o outono traz. Todos os anos.
E aqui estou eu, de novo, sentada à tua espera. Sei que não tardas. A noite traz-te. Tenho a sopa feita. Na boca, o pão de milho ainda quente e a fome que tenho de ti. Em cada novembro. Sempre, até ao fim das eras.
Ana Albuquerque