Publicado em 1997, mas editado em Portugal apenas em 2020, é um livro de natureza diferente da dos seus romances. Para mim, Conversa na Catedral é indubitavelmente um dos grandes romances do século XX. Depois da morte do escritor, há poucos dias, li uma das sua grandes entrevistas em que afirmava que se tivesse de escolher um dos seus livros, escolheria este precisamente. Achei curioso.
O livro que escolhi para hoje trata-se, como o título anuncia, de um conjunto de cartas que o autor escreve, procurando dar respostas a questões colocadas por um jovem com aspirações a escritor, pedindo-lhe ajuda para os passos que deveria dar. Não é certamente qualquer um que pede este tipo de conselhos a um escritor mundialmente conhecido. Nem é certamente qualquer famoso escritor que gasta o seu precioso tempo a responder-lhe. Daí que o autor comece por elogiar, a brincar, o atrevimento deste jovem, afirmando que também ele tinha sentido essa vontade, mas, por timidez ou receio da ausência de resposta, nunca chegou a fazê-lo.
Ao longo das 12 cartas, vamos encontrando muitas reflexões acerca dos ingredientes necessários para a escrita de um romance: o poder da persuasão, o estilo, o narrador, o espaço, o tempo, o nível de realidade, e algumas sugestões que podem ser bem-sucedidas para a estruturação da narrativa: a caixa chinesa, o dado escondido e os vasos comunicantes. Contudo, avisa de antemão o seu destinatário acerca dos riscos desta aventura, particularmente se o move a procura do êxito. Os prémios, o reconhecimento, a venda de livros nem sempre acontecem aos que mais os mereceriam. Se é disso que está à espera, é natural que se vá sentir muitas vezes frustrado.
Llosa afirma que a vocação literária é a grande recompensa de qualquer escritor, visto que significa a sua melhor maneira de viver. Esta vocação não é uma predisposição inata que só toca a alguns eleitos. É mais do que isso, é sobretudo um chamamento, uma necessidade que só se cumpre com a sua realização. E essa realização exige trabalho, disciplina. Talvez no começo exista uma predisposição para fantasiar pessoas, vidas, acontecimentos, mundos. Uma necessidade de se afastar de um mundo real para um outro. E isso é por si só uma manifestação de rebeldia, um desafio.
A literatura é a melhor defesa contra o infortúnio, contra a infelicidade. Um romance parte da realidade que é o motor da ficção, mas é mais do que essa realidade ao ser outra. Não se inventa do nada. O autor, de forma mais ou menos dissimulada, vai aparecendo nas entrelinhas. Muitas vezes, o escritor tem de escrever a história para se libertar dela, para fugir dos seus próprios demónios.
As listas de best-sellers estão cheias de maus romancistas. Um bom romance é aquele que tem a capacidade de nos persuadir, de nos fazer acreditar na história, mesmo sabendo que não é verdadeira. Um bom romance é aquele que dá aos seus leitores uma impressão de que aquele livro é autossuficiente, isto é, que se liberta da realidade e tem em si tudo o que necessita para existir.
A literatura é um artifício é certo, mas a grande literatura é aquela que consegue dissimular esse mesmo artifício. O grande escritor é aquele que consegue ajustar a forma e o fundo. O narrador que conta a história não é o autor que a escreve. Um narrador é feito de palavras, não de carne e osso. O primeiro grande problema que um escritor tem de resolver é precisamente o de dar resposta à questão: quem é que vai contar a história? O narrador pode estar dentro da história, fora dela, ou numa colocação incerta.
Pode haver mais do que um narrador. Esta escolha feita livremente pelo autor vai condicionar a evolução da narrativa. O tempo é outra das categorias fundamentais. Não o tempo visto apenas como a sucessão dos dias, dos meses e dos anos, o tempo cronológico. O tempo psicológico assume um papel de grande relevo. O tempo de cada ficção é sempre diferente. Tempo e espaço condicionam-se.
Contudo, o autor diz que o terreno mais escorregadio para quem quer escrever um romance é o nível de realidade. Sabemos que a realidade é feita de muitos planos. Então, o que realmente é real num romance? É o que conhecemos através da nossa experiência? E o imaginado é o que só é possível no mundo da fantasia? O narrador está em qual deles?
Em todo o romance há um ponto de vista espacial, um ponto de vista temporal e um nível de realidade. É da maneira como se harmonizam que resulta o poder de persuasão de um grande romance. A capacidade de persuadir da sua verdade, que não vem da sua semelhança com o mundo real em que o leitor se situa. Um livro que atinge o mais elevado grau de persuasão é aquele que leva o leitor a viver a ficção, suplantando a própria vida. É o que tem o feitiço de conseguir que nós, durante a sua leitura, deixemos de viver.
Trata-se de um livro brilhante para os que se interessam pelo fenómeno da criação e da crítica
literária. Surpreendentemente, depois de nos ter dado tantos exemplos provenientes da sua leitura de grandes romances de todos os tempos, Vargas Llosa, na sua última carta, em jeito de pós-escrito, pede ao jovem que esqueça tudo o que lhe foi apresentando ao longo das missivas anteriores. Ninguém poderá ensinar o outro a criar. Só poderá ensinar a ler e a escrever. «O resto cada um ensina a si próprio tropeçando, caindo e levantando-se constantemente».
Ana Albuquerque