Se é verdade que a obra de Fialho de Almeida não se deixa prender em classificações periodológicas, esquivando-se à identificação linear com estéticas e com escolas, não pertencendo a nenhuma e com traços de todas, numa mistura de tendências que assimila e transfigura, mentira é que nessa heterogeneidade estética se dilua a principal e extraordinária característica do autor: a forma única como trabalha a matéria linguística, num exercício de efervescente e insatisfeita criatividade, que não só comprova o seu profundo conhecimento do português como permite à própria língua conhecer-se – e surpreender-se – no tão vivaz e inimitável uso que dela faz Fialho. Basta relembrar o conto Ceifeiros, dando o exemplo do seu extraordinário e poético início:
«Apenas os calores primeiros de junho encinzeiram o ceu de tintas baças, toda a ceara, tornada em palha de repente, cobre os margios d’un infindável preamar cheio de galgões. Em quatro dias os aspectos d’esse oceano d’espigas transmutam para uma symphonia oftálmica de côres causticas, entre que a vida crucita, nas mordeduras de luz, que bebe o sangue das hervas como louca.»
Na verdade, a escrita de Fialho, artista maior da palavra, faz à narrativa aquilo que o sol faz à paisagem – natural e humana, que se (con)funde: desnuda, encandeia, abrasa. No entanto, o sol fica aquém da palavra, pois é só causa; já a palavra é a causa e o efeito, expressão e expressividade.
Ao transformar o real observável em objeto preferencial da escrita, marcada por um intenso e poderoso visualismo, Fialho transforma a própria escrita numa realidade nunca antes vista, também pela criação fértil e surpreendente de novas palavras, criação esta que não só se assume como marca do estilo do autor como é evidente prova da plasticidade e maleabilidade de que a língua é capaz, generosa na riqueza lexical e ambiciosa no alcance semântico.
Encontramos vários destes exemplos em Cadernos de Viagem – Galiza, 1905, ao serviço das extraordinárias descrições que Fialho vai fazendo dos lugares pelos quais vai passando, tão pormenorizadas quanto abrangentes, tão observadoras quanto misteriosas, tão fotográficas quanto fílmicas. Assim, talvez por inspiração do nome «casucha», palavra à qual o autor recorre muito frequentemente, algumas vezes com sentido depreciativo, e que designa uma casa pequena e pobre, encontramos também os diminutivos «escaduchas» e «janeluscas», bem como «janelucas». Igualmente com valor de exiguidade, pobreza e insignificância, encontramos «tabernocas» «ermidolas» e «praiotas».
Muito pouco fica dito do tanto que há a dizer nesta matéria – como noutras – sobre Fialho de Almeida; no entanto, se nenhuma outra razão houvesse para resgatar o autor das águas do esquecimento em que, inexplicavelmente, está mergulhado, bastaria esta para o trazer à superfície dos enormes nomes da nossa literatura: a da sua indesmentível criatividade linguística, causa da sua originalidade e efeito do seu aturado labor verbal.
BIBLIOGRAFIA
Almeida, Fialho de (2022). Cadernos de Viagem – Galiza, 1905. Lisboa: Colibri e Associação Cultural Fialho de Almeida.
Almeida, Fialho de. Ceifeiros. [Empresa Industrial Gráfica do Porto. s/d]. Separata oferecida pela Livraria Clássica Editora. Edição fac-similada, Iniciativa da Associação Cultural Fialho de Almeida, com o apoio da Câmara Municipal de Cuba.
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