A menina nasceu ontem. A mãe estava sozinha em casa. As dores do parto apertaram. Cada vez mais frequentes e mais intensas. Aqueceu água numa velha panela de ferro na lareira. Colocou uma tesoura de costura dentro. Deixou-a ferver.
Foi ao quarto, tirou um lençol branco da velha arca de pinho. Trouxera-a com o enxoval quando saíra da casa dos pais para se juntar ao homem com quem vivia. Os pais deram autorização por ser herdeiro de uma regada, filho de uma família de agricultores abastados. Tirou também uma manta de fitas, herdada da avó materna que a tinha tecido com as suas mãos de tecedeira afamada.
As dores eram cada vez mais fortes. Retirou a tesoura da panela. Colocou-se de cócoras sobre a manta e o lençol junto à lareira da velha cozinha térrea. Algumas brasas ainda crepitavam sob as cinzas. Esperou por outra contração. Respirou com calma. A hora estava próxima. E seria uma hora pequenina se Deus quisesse. Puxou.
Voltou-se, ora de lado, ora de gatas. Virou-se de barriga para cima, agora com os joelhos dobrados, e voltou a puxar. Sentiu uma dor cortante no baixo-ventre. Já sentira outras de outras vezes. Aquelas dores eram incomparáveis. Respirou fundo. Voltou a puxar. Voltou a respirar. Transpirava toda na sua camisa de dormir. Um puxão valente rasgou-a na parte baixa do púbis. Sentiu jorrar uma água quente, gelatinosa. Mais um grito, a criança desceu, passou e chorou muito ao vir a este mundo.
Pegou na tesoura que tinha ao lado e, com a força corajosa e certeira de uma mãe experimentada, cortou o cordão que as unia há nove meses. A filha serenou ao ouvir as pancadas do seu coração.
Não foram precisas três fadas para a fadarem. Foi fadada pela mãe com o sinal da cruz na testinha alva.
Deixou-se ficar assim até ganhar força para se levantar. A bacia estava pronta, verteu água da panela de ferro e lavou delicadamente a sua menina. Embrulhou-a num pano branco e foi, de mansinho, deitá-la sobre uma esteira no seu quarto. Enxugou-a. Vestiu-lhe a primeira camisinha que já tinha sido da irmã mais velha. Atou-lhe uma fralda de pano entre as pernas, segurou as pontas com um grande alfinete de ama e travou-o. Era a sua filha que nascera com a companhia dos anjos.Não se esqueceria nunca.
Pegou nela e encostou-a ao peito desnudado. Sentiu o leite a começar de subir, com alguma dor. A menina, instintivamente, procurou com a boquinha o bico da mama da mãe e, passado algum tempo, adormeceu. A mãe deitou-se ao seu lado no chão, sobre a manta. Dormiram tranquilamente, depois do esforço de ambas.
Um relâmpago mais forte cruzou os céus de um lado ao outro da aldeia. Choveu copiosamente até de manhã.
Ana Albuquerque