«E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos?Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?»
Socorro-me deste pensamento de José Saramago que me ocorreu quando lia o, para já o último dado à estampa, livro de Elisabete Bárbara. Um livro lindo, maravilhosamente ilustrado por Ana Paula Gomes, das edições Alfarroba.
Não é lá muito comum as árvores arrepiarem-se, pensamos nós, mas estamos bem enganados! Algumas arrepiam-se muitas vezes, mais do que nós, que devíamos reaprender a fazê-lo! Arrepiar-nos perante a beleza da poesia da vida. Arrepiar-nos perante a beleza da natureza, perante a beleza do amor, perante a beleza dos sonhos, perante a beleza das crianças, perante a beleza e a riqueza desta língua que é a nossa.
Era uma vez uma árvore. Todas as histórias começam assim: Era uma vez… E entramos logo no reino da fantasia tornada realidade ou da realidade tornada fantasia que, muitas vezes, e ainda bem, se confundem. Esta árvore não se arrepiou pontualmente, não, no pretérito perfeito do indicativo! Arrepiava-se com frequência, valor durativo, habitual,dizem os professores de português. Coisa que muitos de nós já nos vamos esquecendo de treinar. A arrepiar-nos frequentemente e a treinar a leitura em voz alta, aqui para nós que ninguém nos lê!
Esta árvore habitava num jardim como muitas outras. Dava-se muito bem com os vizinhos, sobretudo com as margaridas que moravam no rés-do-chão direito. No rés-do-chão direito da vida onde moramos tantos de nós. A árvore nunca tinha visto o mar, mas imaginava-o, logo era como se ele existisse, feito um baloiço sempre a andar para cá e para lá, como aqueles que algumas árvores têm. Nem todas, é verdade! Mas esta tinha. Adorava as crianças e as suas gargalhadas frescas, odoríferas e floridas. Felizes, pois então, no verão sob a sua ramagem larga, proporcional aos seus arrepios. No seu tronco, encostavam-se os namorados que namoravam, os estudantes que reliam os apontamentos (as árvores frondosas do parque Aquilino Ribeiro junto ao nosso liceu, Elisabete), os pintores faziam esboços das pinturas e os poetas, claro está, escreviam poemas. Uma árvore que se comovia quando sentia a poesia «à flor da casca», diz a autora com o seu poder criativo.
Um dia, há sempre um dia, um menino sentou-se debaixo dela a ler um livro em voz alta. Um livro de poemas antigos, ou nem tanto, depende da memória de cada um dos leitores. O primeiro falava de uma nuvem que parecia um cavalo; outro de um rapaz que sabia um ninho; outro, ainda, dizia que tinha o nome da mãe na palma da mão, de um poeta brasileiro.
A árvore arrepiava-se com a leitura de cada um deles, ao ponto de querer chorar de emoção. Que pena não ter olhos para verter umas lágrimas! Deixou cair duas folhas sobre o colo do rapaz. Duas folhas longas, riscadas com nervuras salientes como as mãos do pai, dos pais que sabem ser os meninos que já foram. O menino colocou asduas folhas-lágrimas no seu livro entre o poema das nuvens e o do passarinho, guardando, sem saber, outro segredo.
Na manhã seguinte, era domingo e o menino voltou ao jardim. Levou o seu livro. Sentou-se a lê-lo. Já ia na penúltima página, no poema que falava do mar que rebentava nas páginas dos livros. Que interessante! Como é que isso era possível? Desta vez leu baixinho, mas a árvore ouviu-o na mesma, com os raminhos encostados a ele. O menino entendeu o que a árvore queria e leu alto, muito alto. A árvore voltou a arrepiar-se, desde os pés até á cabeça, que é como quem diz, «da raiz à ponta dos ramos» até sentir um «calafrio profundo» que se estendeu por todo o jardim e todas as pessoas o experimentaram fascinadas…
O poema das nuvens, a autora não diz de quem é, mas alguns descortinarão a ligação intertextual que estabelece com o poema de José Gomes Ferreira «Aquela nuvem parece um cavalo… /Ah! Se eu pudesse montá-lo! / Aquela? // Mas já não é um cavalo, / É uma barca à vela. / Não faz mal./ Queria embarcar nela. / Aquela? / Mas já não é um navio, / é uma torre amarela/ a vogar no frio onde/ encerraram uma donzela.» E por aí adiante!
O poema do ninho e do passarinho é nem mais nem menos o poema «Segredo», de Miguel Torga: Sei um ninho/ e o ninho tem um ovo. / E o ovo, redondinho, / tem lá dentro um passarinho/ novo. /Mas escusas de me atentar:/ nem o tiro, nem o ensino. /Quero ser um bom menino, /e guardar este segredo comigo/ e ter depois um amigo / que faça o pino/ a voar…
O poema da penúltima página é de Ruy Belo. Um poema lindo que nos fala da saída da casa dos pais antes de crescer: Na minha juventude antes de ter saído/ da casa de meus pais disposto a viajar/ eu conhecia já o rebentar do mar/ das páginas dos livros que já tinha lido. (…) Só sei que tinha o poder duma criança / entre as coisas e mim havia vizinhança/ e tudo era possível era só querer.
E vejam, como de um livro se pode passar para outros, aguçando a vontade de ler, ler mais, ler bons livros, ler grande autores que partilham uma longa cadeia de comunicação na memória da língua portuguesa. E a Elisabete fá-lo de forma ímpar.
Não quero contar-vos a história toda, contudo não podia deixar de vos dizer, até para vos abrir ainda mais o apetite, que esta árvore é uma árvore que faz milagres. Os seus frutos são bons gelados. Roxos, de amora, vermelhos, de morango. E até alguns com pepitas de chocolate! E, já agora, também não vos revelo qual é o último poema deste fabuloso livro. Trata-se de um diálogo com um outro poeta grande que nos falava de uns olhos lindos que tinham sido como peixes verdes. Vejam lá se adivinham? Isto era quando o amor fazia estremecer todas as coisas do mundo.
Pois é, quando queremos, nada é impossível!
Que maravilhosa lição!
Ana Albuquerque