Há um instante secreto (quase nunca visto pelo público) em que a obra ainda não existe, mas já respira. É nesse intervalo que vive o encenador. Antes do primeiro ensaio, antes da primeira marcação, antes do primeiro foco aceso, ele levanta silenciosamente o alicerce invisível do que virá a ser teatro. O espírito que o move não é o da autoridade, apesar de todos lhe perguntarem por respostas. É o da escuta. O encenador escuta o texto, escuta a sala, escuta os atores e até as pausas que surgem entre duas frases aparentemente banais. O seu trabalho começa onde todos os outros ainda tateiam, e termina muito depois de todos acreditarem que já está tudo feito.
Erguer uma obra é um exercício de fé: acreditar que um conjunto de gestos, palavras e respirações pode, por instantes, transformar-se em verdade. O encenador guia esse processo com uma mistura rara de rigor e desassossego. É um artesão da dúvida: move a cena um milímetro, altera um silêncio, troca um olhar…e tudo muda. Sabe que o teatro vive desses detalhes minúsculos, tão frágeis quanto insubstituíveis. Mas o encenador é também guardião de algo mais profundo: o impulso primordial de contar histórias. Quando abre as portas do ensaio, traz consigo a responsabilidade de honrar essa herança ancestral. Ensina o elenco a olhar o mundo com outros olhos, a descobrir na imperfeição a matéria do humano, e na disciplina o caminho para a liberdade artística.
A obra ergue-se assim: tijolo a tijolo, gesto a gesto, numa construção que é simultaneamente técnica e espiritual. E quando, finalmente, o pano sobe, o encenador sabe que já não lhe pertence. Pertence ao público, ao lugar, ao tempo. O seu espírito segue então para o próximo vazio, para a próxima sala em silêncio, onde uma nova história o espera para ganhar forma. Porque o teatro (tal como a vida) só existe quando alguém tem coragem de o cumprir.
António Leal
Encenador/Diretor Artístico















