ARTIGO DE OPINIÃO: Coragem Poética

09/10/2025 18:30

Há dias em que entro num teatro municipal do interior e sinto o mesmo frio que se sente num cartório. Há uma mesa, uma bandeira, uma ata, um regulamento, um calendário com o logótipo da câmara. Tudo está no lugar. Tudo funciona. Mas o que não se ouve — o que devia estar ali, a vibrar — é o som do risco. O som da criação. 

Talvez seja isso que mais me dói: perceber que, em muitos lugares, os responsáveis pelos equipamentos culturais são burocratas, não artistas. E não por falta de talento, mas por estrutura. Porque a cultura, nas vilas e pequenas cidades, foi sendo transformada num departamento da administração, uma secção com carimbo, horário e plano de atividades. 

Um artista sabe que um teatro é um corpo vivo: respira, erra, sonha. Um burocrata sabe que um teatro é um edifício: tem contas, relatórios e inventário. E entre uma coisa e outra, perde-se a chama. 

A cultura oficial do interior é, muitas vezes, uma cultura sem erro. Tudo tem de ser previsível, justificável, comunicável. 

Mas a arte não é isso. A arte é o território onde o erro é fértil. Onde o imprevisto é matéria-prima. Onde se tenta e falha, e é do falhanço que nasce o espanto. 

Só que o erro não cabe nos relatórios. Não tem KPI, não gera headline. 

Por isso, o programador torna-se gestor, o palco vira auditório, e o artista vira convidado — quando devia ser cúmplice. 

Nas autarquias, a cultura é frequentemente tratada como montra: uma fotografia para o jornal local, um cartaz com logótipos, um evento para justificar investimento. 

Nada contra o espetáculo — eu vivo dele —, mas o problema é quando o espetáculo se transforma em política e a política esquece que a arte é mais do que entretenimento. 

Já vi diretores de cultura que nunca viram um ensaio. Que falam de “conteúdos” e “indicadores de público” como quem fala de tubos de ensaio, sem nunca ter sentido o arrepio de um silêncio partilhado na plateia. 

São bons a preencher tabelas, maus a criar mundos. 

O artista, nesses contextos, é uma figura quase suspeita. 

Quando chega com uma proposta, é recebido como quem traz um incómodo. “E quanto custa?”, perguntam logo, antes de ouvirem o que é. 

Há uma desconfiança estrutural em relação ao gesto criativo, como se o risco fosse uma ameaça à estabilidade do sistema. 

Mas o sistema sem risco é cemitério. 

Por sorte, ainda há lugares onde o teatro respira — onde as casas de cultura se tornam casas de encontro. 

Nesses lugares, o responsável pelo equipamento é alguém que ama o palco, que conhece os artistas pelo nome, que sabe que um ensaio às vezes vale mais que uma estreia. 

Lugares assim tornam-se refúgios. Não pela grandeza do edifício, mas pela intensidade do gesto. 

O que falta, na maioria dos espaços culturais no interior, não é dinheiro: é coragem poética. Coragem de confiar nos criadores, de permitir o erro, de fazer do espaço público um espaço de experimentação. 

Porque o interior também tem direito a ter arte viva — não apenas a receber o que sobra dos centros. 

No fim do dia às vezes penso que a burocracia é o modo como o poder tenta domesticar o indomável. 

Mas a arte é, por natureza, indomável. 

E por mais que se fechem as portas com regulamentos e despachos, há sempre um artista que entra pela janela — e acende uma luz onde já só havia papel. 

António Leal Encenador 

Diretor Artístico 

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