Há dias em que entro num teatro municipal do interior e sinto o mesmo frio que se sente num cartório. Há uma mesa, uma bandeira, uma ata, um regulamento, um calendário com o logótipo da câmara. Tudo está no lugar. Tudo funciona. Mas o que não se ouve — o que devia estar ali, a vibrar — é o som do risco. O som da criação.
Talvez seja isso que mais me dói: perceber que, em muitos lugares, os responsáveis pelos equipamentos culturais são burocratas, não artistas. E não por falta de talento, mas por estrutura. Porque a cultura, nas vilas e pequenas cidades, foi sendo transformada num departamento da administração, uma secção com carimbo, horário e plano de atividades.
Um artista sabe que um teatro é um corpo vivo: respira, erra, sonha. Um burocrata sabe que um teatro é um edifício: tem contas, relatórios e inventário. E entre uma coisa e outra, perde-se a chama.
A cultura oficial do interior é, muitas vezes, uma cultura sem erro. Tudo tem de ser previsível, justificável, comunicável.
Mas a arte não é isso. A arte é o território onde o erro é fértil. Onde o imprevisto é matéria-prima. Onde se tenta e falha, e é do falhanço que nasce o espanto.
Só que o erro não cabe nos relatórios. Não tem KPI, não gera headline.
Por isso, o programador torna-se gestor, o palco vira auditório, e o artista vira convidado — quando devia ser cúmplice.
Nas autarquias, a cultura é frequentemente tratada como montra: uma fotografia para o jornal local, um cartaz com logótipos, um evento para justificar investimento.
Nada contra o espetáculo — eu vivo dele —, mas o problema é quando o espetáculo se transforma em política e a política esquece que a arte é mais do que entretenimento.
Já vi diretores de cultura que nunca viram um ensaio. Que falam de “conteúdos” e “indicadores de público” como quem fala de tubos de ensaio, sem nunca ter sentido o arrepio de um silêncio partilhado na plateia.
São bons a preencher tabelas, maus a criar mundos.
O artista, nesses contextos, é uma figura quase suspeita.
Quando chega com uma proposta, é recebido como quem traz um incómodo. “E quanto custa?”, perguntam logo, antes de ouvirem o que é.
Há uma desconfiança estrutural em relação ao gesto criativo, como se o risco fosse uma ameaça à estabilidade do sistema.
Mas o sistema sem risco é cemitério.
Por sorte, ainda há lugares onde o teatro respira — onde as casas de cultura se tornam casas de encontro.
Nesses lugares, o responsável pelo equipamento é alguém que ama o palco, que conhece os artistas pelo nome, que sabe que um ensaio às vezes vale mais que uma estreia.
Lugares assim tornam-se refúgios. Não pela grandeza do edifício, mas pela intensidade do gesto.
O que falta, na maioria dos espaços culturais no interior, não é dinheiro: é coragem poética. Coragem de confiar nos criadores, de permitir o erro, de fazer do espaço público um espaço de experimentação.
Porque o interior também tem direito a ter arte viva — não apenas a receber o que sobra dos centros.
No fim do dia às vezes penso que a burocracia é o modo como o poder tenta domesticar o indomável.
Mas a arte é, por natureza, indomável.
E por mais que se fechem as portas com regulamentos e despachos, há sempre um artista que entra pela janela — e acende uma luz onde já só havia papel.
António Leal Encenador
Diretor Artístico