A vaga da emigração portuguesa para França nas décadas de 60 e 70 do século passado, em particular, alcançou em toda a linha a minha infância e juventude, a minha formação como homem e cidadão, meu pai ausente em Paris acompanhando com os irmãos essa fuga para a frente de muitas centenas de milhares de portugueses, uns para fugir à miséria e às dividas, outros para escapar a uma Guerra Colonial mortífera e inconcebível. Por pudor ou desinteresse, por incómodo ou por segurança, muitos nunca contaram as suas histórias de superação.
Meu pai partiu era eu um menino de poucos anitos, ainda a pedir colo à mãe e a proteção de uns braços fortes que se fizeram ausentes, fórmula encontrada por necessidade imperiosa de sobrevivência familiar. Esta verdadeira saga dos nossos familiares e amigos, escapando de “salto” através de uma fronteira terrivelmente vigiada, viajando escondidos em camionetas e tratores pela Espanha franquista, atravessando os Pirenéus gelados escapando por pouco a uma morte certa, esta saga espantosa está agora descrita em álbum de Banda Desenhada por um filho de portugueses nascido em Paris, Olivier Afonso.
O artista seguiu uma formação de artista plástico normal. No início da sua carreira dedicou-se à pintura artística, e é há mais de vinte anos um dos criadores de efeitos especiais e de maquilhagem mais conceituados do cinema francês, tendo trabalhado para filmes como Titane que, em 2020, obteve a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes. Depois de se ter estreado em 2018, como realizador e argumentista na comédia de terror Girls with Balls, assina o argumento de Os/Les Portugais, publicado em França em Fevereiro de 2022.
A história parece simples: aos dezoito anos, Mário foge de Portugal escondido na bagageira de uma velha viatura. Na fronteira franco-espanhola, local onde o seu passador o deixa, conhece Nel. Na companhia deste jovem compatriota, vai descobrir a vida aventureira dos emigrados num bairro de lata da região parisiense: trabalho nas obras, noites regadas a vinho verde, conversa, esquemas…
Esta história de amizade singular é transversal ao destino de milhares de Portugueses que, nos anos 1970, fugiram da ditadura de Salazar e tentaram, cada um à sua maneira, reconstruir a sua vida. Estória pessoal e simultaneamente história de um país que em 1974 saiu da ditadura para dar os primeiros passos em democracia, o livro Os/Les Portugais é uma obra imperdível. Partindo daquela que é também a sua história, Olivier Afonso (re)constrói a dura realidade da emigração em França, muito bem ilustrada pela arte de Chico (pseudónimo de Aurélien Ottenwaelter, que nasceu em 1983. Chico trabalha desde 2015 como storyboarder para diversos estúdios de animação franceses. Paralelamente, desenha para revistas como a TOPO e a Revue dessinée).
Num desenho singelo mas enternecedor, onde o pormenor e o realismo estético se deixam ultrapassar pela função histórica e pela profundidade emocional e familiar da história narrada, em pinceladas urgentes, num registo marcadamente cinematográfico, como urgente a necessidade daqueles portugueses em conquistar a dignidade e a fraternidade em liberdade, num espaço adverso e hostil, onde cada dia era feito de riscos enormes e desafios sobre o arame.
A emigração é sempre uma história individual e uma aventura coletiva, hoje feita de outros contornos e protagonistas, fonte de memórias familiares e matriz de narrativas políticas. No seu rasto multiplicam-se feridas abertas, trajetórias de superação e heranças intergeracionais. Esta obra singela pode ser uma homenagem aos pioneiros da emigração em França, tantas vezes esquecidos e humilhados, a quem devemos um abraço fraterno de saudade e de agradecimento. Obrigado meu pai, por tudo!
