Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra,
de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro
para adivinhar a febre, e atrás dele descobre-se que
não é preciso cura nem tratamento. Instala-se na cabeça,
no corpo, na boca, nos dedos, sem dor nem cansaço,
apenas aquela ânsia a que se dá o nome de desejo e,
para que abrande, o remédio é ver quem se ama, ouvir
a voz que alivia a solidão, saber onde está, o que faz,
o que veste. E a doença está nos que a evitam, nos
que a não conhecem por ignorância ou por medo,
nos que nunca ousaram e, um dia, rejeitaram o que
se lhes oferecia. Assim, dizem os especialistas,
não evitem o olhar que vos procura, não esqueçam
a palavra que vos chega, tão inesperada; e recebam
sem receio essa mão que tereis sonhado e vos
procura, fazendo com que entreis, para sempre,
no campo dos atingidos pelo mais doce dos contágios.
Nuno Júdice,2020. Regresso a um cenário campestre. Lisboa. D. Quixote.
Partindo do título e da data de publicação do livro de onde foi extraído o poema, poderíamos pensar na sua ligação com o fenómeno pandémico que temos vivido, durante um largo período com muitas sombras e medos, ainda não totalmente desvanecidos, dado que os casos aumentaram nos últimos dias.
O sujeito poético traz para o seu texto um conjunto alargado de vocábulos da área lexical da saúde ou da falta dela, nomes como «febre», «cura», «tratamento», «remédio», «suspiro», «cansaço», «ânsia», «medo», «contágios», ou formas verbais como «passar», «descobre-se», «instala-se», «abrande», «alivia», são facilmente associados aos sintomas e comportamentos habituais numa situação de doença.
Contudo, se à primeira vista, somos levados a pensar que este poema, escrito num tempo difícil, se centra na pandemia, desacreditamos quando, logo nos primeiros versos, são enumeradas formas inabituais de contágio: através do «olhar», de uma «palavra», e estranhamos a natureza dos sintomas, «sem dor, nem cansaço», e, ainda mais quando se se afirma que não precisa de cura e não há tratamento.
Estamos, afinal, perante uma doença de natureza diferente de todos as outras, para as quais vamos encontrando substâncias, mais ou menos curativas, criadas laboratorialmente. Ora, o remédio para a «epidemia» de que aqui se fala é biológico, barato, de fácil acesso, sem efeitos secundários indesejáveis. Altamente recomendado pelos especialistas. Veja-se aqui o jogo irónico do uso desta palavra quase nos últimos versos.
Nas outras doenças, descontentes ou desconfiados com os diagnósticos, deixamos para o fim a consulta com os especialistas, verdadeiras autoridades na matéria, certificados pelos centros académicos de renome. Esses sim, irão salvar-nos.
Aqui, os especialistas são aqueles que, em vez de xaropes, comprimidos ou injeções, nos mandam olhar para os outros, falar com eles, dar-lhes a mão, interessando-nos por eles, isto é, trocando afetos, amando. E há tantas formas de amar para evitar esta doença da solidão, do isolamento, do desprezo, da indiferença que a todos tolhe. Qualquer dia não há quem nos salve até de nós próprios!
Este ano nosso ano ficou marcado por várias partidas que nos entristeceram. Uma delas foi a de Nuno Júdice. Um poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, crítico, tradutor e professor que representou várias vezes o governo português em vários organismos como, a título de exemplo, o Instituto Camões e a Embaixada de Portugal em Paris.
A sua poesia assinala um marco indelével na poesia portuguesa contemporânea, pela renovação da escrita poética e o estabelecimento de diálogo da poesia com outras formas literárias, como o teatro ou a narrativa. Nela encontramos uma nova sensibilidade preocupada com a importância da palavra, com a natureza discursiva, ilustrada muitas vezes através da utilização de versos muito longos, numa quase indistinção entre a poesia e a prosa.
Este poeta teve um grande reconhecimento internacional. Foi galardoado com inúmeros prémios nacionais e internacionais, nomeadamente com o «Prémio Reina Sofia de Poesia Ibero-Americana».
Boas razões para o lermos ou relermos agora que as férias se aproximam.
Ana Albuquerque