Mais do que arquivos de realia, entre os quais os geográficos ou espaciais, os livros são lugares onde se cruzam outros livros, como conhecidos que se encontram numa rua – mais ou menos direita ou mais ou menos sinuosa – e param para conversar, que é outra forma de dizer intertexto, assunto em que os livros que têm uma vasta biblioteca e ainda maior memória costumam ser versados, hábeis em tirar parecenças, como quando se folheia um álbum de fotografias e se vê logo, como em Os Maias, que o filho tem os olhos do pai ou o jeito de rir da mãe.
Ora nem de propósito. É que, ao ler o passo de A Via Sinuosa em que Libório recorda as aulas de gramática e de retórica que lhe dava o senhor padre-mestre, logo espreita o padre Vasques para saber do Pedrinho. A comparação do trecho «Meu mestre sentava-se num cadeirão de coiro lavrado que no tope havia, por baixo dum tabernaculozinho suspenso da parede, com corrediças em pano da Índia e anjos, no supedâneo, de olhos bugalhudos. Dentro erguia-se Jesus Cristo crucificado. E, pondo ele à sua beira o lenço de Alcobaça, a caixa dos óculos, e a caixa do rapé, para lá de largo em largo tirar a esperta pitadinha, ia eu claudicando no meu itinerário através das latinidades.» com o excerto «O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha (…) Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho…», e salvaguardadas as devidas diferenças entre ambos – até porque a intenção crítica de Eça escolhe uma corrosiva estratégia caricatural da personagem que em Aquilino não se verifica – mostra, para além do hábito – ou do vício do rapé – partilhado pelos padres, o lugar do latim numa educação a cargo do clero, num percurso mais difícil para os aprendizes do que a subida até ao castelo de Lamego.
A ligação entre a educação e a religião é uma das isotopias que atravessam A Via Sinuosa e Os Maias, concretizada em espaços fechados, como conventos ou quartos de estudos, num tempo em que se, as pedras eclesiásticas das ruas preferem in-fólios a joelhos esfolados, o estômago dos clérigos prefere «galinhas guarnecidas de torresmos, galinhas moiriscas, frângãos em caldo amarelo, frângãos turcos com natas e cardos, lombo de vaca com alcaparras, capelas reais com tutanos, almojávenas de ovos-moles!» a hóstias e jejuns. Em matéria de missais, perdão, menus, Aquilino não fica atrás de Eça, e a boa literatura abre o apetite. Há sempre espaço para mais. É como diz o tio de Libório: «Eu vou cá buscar uma pinga, que com uma soalheira dessas hão-de ter a goela abrasada.»