ARTIGO DE OPINIÃO: Dor Fantasma

06/07/2023 18:30

O título é sugestivo. Trata-se do romance de Rafael Gallo, vencedor do Prémio Literário José Saramago 2022. 

Este prémio, instituído pela Fundação Círculo de Leitores, em homenagem ao nosso Nobel da Literatura, com periodicidade bienal, tem como objetivo primeiro a promoção do património literário em língua portuguesa, estimulando a criação literária e a dedicação à escrita por jovens autores (até aos quarenta anos) da vasta comunidade lusófona.

Rafael Gallo, escritor brasileiro nascido em S. Paulo em 1981, foi o último premiado entre centenas de candidaturas. O júri que incluiu Pilar del Río e outros escritores vencedores do mesmo Prémio em edições anteriores, como José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e João Tordo, considerou esta obra de uma natureza singular pela fluidez da escrita, como se de uma pintura se tratasse, e pelo tom acentuadamente musical que o aproxima da arte de um maestro. Seria fácil a sua adaptação cinematográfica e a banda sonora já está presente no texto, digo eu.

O escritor, que afirma com frequência que quer continuar a ser «aquele garoto que sonhava em escrever um livro», já tinha sido premiado com o seu livro Rebentar, com o Prémio S. Paulo da Literatura 2016 e o Prémio SESC de Literatura de 2012, data da sua estreia como escritor com a obra Réveillon e outros dias.

O protagonista, que é um conceituado pianista e professor de música, especialista na obra de Franz Liszt, compositor e pianista virtuoso húngaro do século XIX, nutre um especial apreço pela partitura do Rondeau Fantastique, considerada uma das peças intocáveis do grande compositor.  Treina-a incansavelmente, já de cor, pois tenciona levá-la em concerto pela Europa, tocando-a como ninguém o fez. Vive e toca-a obcecado pela perfeição. A narrativa começa precisamente com o seu último concerto, feito ainda antes dessa esperada peregrinação. O destino inexorável prega uma partida inaudita a Rômulo Castelo.

Trata-se de um homem solitário e estranho. Não gosta de convívios e, como professor, revela-se um homem impaciente e até grosseiro perante as falhas dos alunos. Vive com Marisa e um filho com deficiência, o Franzinho, aos quais nem sequer presta atenção.  Em casa, vive enclausurado na sua sala de estudos, uma espécie de cofre forte insonorizado, para que os ruídos exteriores não o perturbem e nem os sons produzidos se escapem para o exterior. Um mundo só dele. Só dele e da música, com um piano ao centro, estantes repletas de livros e de partituras nas paredes e numa delas, ao centro, uma réplica de um retrato de Liszt, que os une numa espécie de corrente etérea que os transcende.

O velho pai, também ele um grande maestro e professor de música e que tinha sido muito rígido com os estudos musicais do filho, está agora numa casa de repouso. O filho mal o visita e sente-se incomodado quando lhe ligam, ou melhor, quando conseguem que ele atenda. Vive apenas e só com e para o seu piano. Com Marisa, a jovem que encontrou depois de uma paixão mal acabada, comunica através de bilhetes, mensagens telegráficas: não venho jantar ou volto mais tarde.

Desde o início da narrativa, pressagiamos que a personagem masculina caminha irremediavelmente para a desgraça.  Num fim de dia de tempestade, como habitualmente, foi o último a sair da universidade onde lecionava e se sentia sufocar.  Saía depois de todos saírem. Evitava o contacto com os colegas docentes. Vivia alienado à espera do tal concerto. No passeio, murmura, interiormente, trechos musicais que estavam previstos para um ensaio que foi adiado.  Acena negativamente a um taxista. Não lhe apetece regressar a casa. 

Olha para o céu zangado. Um trovão ecoa e um raio implacável faz com que tudo gire, em confusão à sua volta.  Nuns segundos, apercebe-se que está caído no chão e ao seu lado está uma motocicleta caída, cuja roda dianteira continua a girar. Sente na boca um gosto de sangue. Não sente o braço direito. Um motociclista acaba de se erguer do asfalto e foge, deixando atrás de si o rasto barulhento de um motor e a fumaça sufocante que o enjoa. Transeuntes chegam e tentam ajudá-lo. Ninguém conhece aquele senhor grisalho, bem vestido. Talvez professor ali na faculdade, alguém murmurou.  A sirene da ambulância, que se aproxima, é um apito lancinante de dor na sua mão direita. A mão que já não está na extremidade daquele braço que não sente, a dor do imenso nada que existe dentro de si. A dor fantasma que o acompanhará até ao fim.

Poderia continuar a contar-vos a história, mas seria injusto da minha parte para aqueles que ainda não leram este romance. Deixo apenas algumas questões para os pretensos leitores. O que será deste homem, um pianista ímpar, sem a mão direita? Uma barata inútil como Greg Samsa, da Metamorfose de Kafka? Que fará Marisa agora com aquele homem de quem já nem sente pena? E o filho, o que acontecerá a esta criança? 

Muitos serão os caminhos possíveis de leitura. Muitas são as reflexões que nos provoca: a pequenez do homem face às suas circunstâncias, a impossibilidade da perfeição, as forças imponderáveis e descontroladas da vida, a solidão interior, a incapacidade, a obsessão e a perda.

Trata-se, indubitavelmente, de um grande romance. Um pequeno senão, o fim era previsível vinte páginas antes e não valia a pena escrevê-lo até ao fim, de forma tão mórbida, violenta e atroz, em que tudo, ou quase tudo, fica dito. Mas gostei, gostei muito!

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