Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível.
(…)
Jorge de Sena
Decidi, hoje, trazer-vos Luís de Camões, partindo das palavras de Jorge de Sena, um poeta do século XX, num poema extraordinariamente belo que dá corpo às lamentações do Poeta, face à incompreensão e à falta de reconhecimento do seu valor pelos homens do seu tempo.
Participei no dia 23 de janeiro numa conferência na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra na apresentação de um estudo, realizado por investigadores das áreas da literatura e da astronomia, que apontam para a possibilidade de Luís de Camões ter nascido naquele dia no longínquo ano de 1524. O nosso aniversariante faz nada mais nada menos do que 500 anos. É obra!
Não que só devamos homenagear os nossos quando fazem anos no calendário do tempo, mas esquecê-los será muito mais grave. Não será hora de sabermos qual a programação das comemorações em Portugal? Comissária nacional já temos: a doutora Rita Marnoto. Não seria de imitarmos os nossos vizinhos espanhóis que celebraram com pompa e circunstância o nascimento de Cervantes?
Antes de Camões havia uma língua que buscava, titubeante ainda, a sua afirmação. Com Camões nasce a língua portuguesa, em todo o seu esplendor, assumindo a sua forma adulta de uma língua nova, moderna e rica. Há um antes e um depois de Camões (a. C) na nossa língua e na nossa literatura.
E não, não estou só a falar de Os Lusíadas que alguns leram, ou ouviram ler, em adaptações, por vezes muito pobres, nas aulas de Português. Muitos se queixam da dificuldade da leitura do original e colocam-no de lado. No atual contexto escolar, os alunos portugueses já não aprendem as funções sintáticas ou a classificação de orações a partir deste nosso livro. Contudo, infelizmente, é cada vez mais redutora a leitura que dele se faz. As aulas limitam-se, muitas vezes, a parafrasear, ou melhor, a traduzir para um português mais fácil, tão fácil que vai até à expurgação, ao esvaziamento, da sua riqueza linguística e literária.
Passamos a correr pela lírica camoniana com dois ou três vilancetes e dois ou três sonetos, para os quais os alunos já encontram leituras formatadas na Internet, a biblioteca universal e única para muitos. Que pena, que não tenhamos tempo para saborear os seus versos, sem necessidade de powerpoints ou quejandos!
Parece-me, cada vez mais, que em vez de fazermos um estudo diacrónico da literatura portuguesa, dando saltinhos ou verdadeiros saltos acrobáticos de autor para autor, seria muito mais profícuo para todos a definição de um corpus literário breve que permitisse, no ensino secundário, o estudo mais sério de três ou quatro escritores da nossa praça.
Sei que é difícil a seleção, mas também sei que há autores e textos consensuais. Um Camões no décimo, em intertextualidade com alguns poetas contemporâneos; um António Vieira e um Eça de Queirós, no décimo primeiro ano; um Fernando Pessoa e um Saramago no décimo segundo, em diálogo com alguns textos de outros autores contemporâneos, selecionados pelo professor, que é, cada vez menos, um construtor de currículo e se torna, cada vez mais, um funcionário público, ao serviço do cumprimento de programas e de preparação para exames, quando os há.
Estes mestres da literatura seriam suficientes e possibilitariam o tempo para o desenvolvimento de capacidades de leitura de outros géneros textuais, do treino da oralidade e da escrita, que têm sido muito enjeitados, no campo das práticas pois, em termos teóricos, as competências e as aprendizagens, ditas essenciais, ocupam páginas e páginas de documentos oficiais.
O exercício da palavra falada, lida e escrita é, por outro lado, cada vez mais prejudicado pela intenção de tudo querer avaliar através de grelhas excel, numa perspetiva de contabilidade que refreia a imaginação e a criatividade, como se de contas e mais contas se pudesse fazer a atividade de ensinar/aprender. Esta tem de ser, antes de tudo, uma atividade prazerosa para todos, professores e alunos, uma atividade prazerosa sim, mas que não descuide o esforço e o trabalho de exploração das virtualidades de uma língua que nos define e na qual vivemos: pois que nela vivemos é força que vivamos, ao jeito de Camões!
Ana Albuquerque