Valter Hugo Mãe é um dos escritores portugueses que, como outros jovens autores do mundo lusófono, ganhou o Prémio Literário José Saramago. Este digno reconhecimento deu-lhe a visibilidade necessária para integrar, de forma justa, o mundo da Literatura em Língua Portuguesa Contemporânea, sendo dos mais lidos e dos mais traduzidos em diferentes línguas.
Gosto de acompanhar a produção literária dos nossos escritores ditos da atualidade. Depois dos notáveis romances A máquina de fazer espanhóis e O filho de mil homens, que li com avidez, saboreei a escrita deste autor em Homens imprudentemente poéticos e no livro Contra mim apreciei as marcas da escrita autobiográfica. Dediquei-me à ternura de Contos de cães e maus lobos, O paraíso são os outros e Serei sempre o teu abrigo. Estes últimos com ilustrações belíssimas, revelando traços intencionais de uma certa candura infantil do autor e de outros artistas muito ou até pouco conhecidos no panorama artístico português.
A minha leitura de As Doenças do Brasil (2021), contrariamente aos livros que referi anteriormente, não se revelou um processo fácil. Li com avanços e recuos até me entusiasmar, o que só aconteceu a partir de um dos últimos capítulos. Contudo, ao chegar à meta, senti a necessidade de preencher os vazios e procura respostas para as interrogações que este tipo menos ortodoxo de leitura me tinha deixado. Regressei ao princípio e percorri todas as páginas, fazendo uma nova leitura/releitura, agora do princípio ao fim, em dois dias.
Quando se trata de leituras que não tenho de fazer por razões de ordem profissional ou académica, se um livro não me entusiasma nas suas primeiras vinte páginas, desisto e dedico-me a outro, que tenho sempre de reserva sobre a mesa de cabeceira ou a secretária. Já não tenho assim tanto tempo de vida para ler tantos livros quantos os que gostaria de ler nem de reler muitos dos que ficaram a fazer parte da minha história.
Sei agora o que me fascinou. Para além da efabulação extraordinária dos primeiros contactos dos portugueses no processo de colonização do Brasil, da exploração dos povos indígenas e da inadmissível manifestação da superioridade dos brancos em relação aos vermelhos e aos negros, o que me levou a não desistir desta leitura foi, indiscutivelmente, o exercício fascinante do uso da palavra.
A forma poética e genuína da utilização da língua portuguesa e o resultado da sua miscigenação com os falares de outros homens, povos da Amazónia que, com as suas águas sagradas e florestas povoadas de animais, comungavam da magia que a todos unia, numa espécie de língua universal, é extraordinária.
O narrador vai usando muitas palavras provenientes da língua tupi, obrigando-nos a consultar o dicionário para a compreensão de vocábulos como «abaeté», «igarapé», «curumim» e muitos outros que coexistem com a língua portuguesa. O resultado desta miscigenação, repito, é deveras surpreendente.
A ausência intencional do ponto de interrogação, do de exclamação e do travessão recorda-nos a escrita saramaguiana e o tom oral que Saramago quis incutir aos seus livros. A voz do narrador, sustentada por uma construção frásica melodiosa, própria da oralidade, facilita a descodificação dos sentidos do texto. Valter Hugo Mãe segue, com facilidade, a tradição ancestral dos contadores de histórias em voz alta e encanta-nos com as suas palavras mágicas.
Outro aspeto de acentuado tom poético é a forma como as personagens são nomeadas, as «femininas», os «opacos» e os «transparentes», para designar as mulheres, os homens e as crianças. Só algumas têm direito a nomes próprios que carregam toda a singularidade das suas vidas: Altura Verde, Boa de Espanto (a nativa violada por um branco), Honra (o filho que resultou da violação), Meio da Noite (o negro escravizado que conseguira fugir), Pai Todo (o chefe da tribo) e outras.
O escritor, nas últimas páginas do livro, explica-nos o processo de escrita deste romance, salvaguardando que não foi sua intenção fazer o retrato de uma comunidade real, de um povo originário do Brasil, ou fazer Antropologia, Sociologia ou História. Considera-se apenas um «coletor de palavras», fascinado pela busca constante do eterno poema, aqui feito em prosa. De facto, nos seus livros nem sempre se sabe onde começa um e acaba a outra.
Nas suas palavras perpassam os valores do humanismo, da denúncia e recusa de todas as formas de agressão, espoliação e assassinato a que foram sujeitos (e ainda são) muitos seres humanos.
Espero, ansiosamente, o seu novo romance Deus na escuridão. O título promete.
Ana Albuquerque