ARTIGO DE OPINIÃO: Aquela limpa e leda madrugada

17/04/2024 18:15

Muitos livros e autores foram censurados pelo Estado Novo, como foi o caso de Papiniano Carlos (1918-2012), que viu três das suas obras proibidas pela Direção dos Serviços de Censura, entre as quais Estrada Nova: Caderno de Poemas (1946). 

O primeiro poema deste livro intitula-se Abertura e, tal como a Proposição épica, apresenta ao leitor a intenção e a matéria do seu Canto: «Eu venho/para cantar a epopeia dos homens sofredores»; «Eu venho para anunciar os grandes dias redentores»; «Eu anuncio/ a madrugada evidente/e os dias necessários que tudo solverão/como é justo». 

Faltariam ainda 28 anos para a «alegria plena» do «canto dos poetas», então capaz de transformar os seus poemas em «pássaros voando/na manhã clara». Esta transformação traduz a mudança que é, simultaneamente, causa e resultado da liberdade, simbolicamente representada pelos «pássaros voando», pela «madrugada» e pela «manhã clara». É nesta medida que podemos acrescentar um outro sentido ao título deste texto inaugural: não só o de abrir o caderno de poemas, mas o da abertura que deixa entrar a luz para, vencendo a escuridão e a clausura, possibilitar o voo – que asas fechadas não permitem. 

Essa «madrugada» que há de vir é aquela que Sophia testemunha: «Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo» (in O Nome das Coisas, 1977). A claridade anunciada dá lugar à claridade concretizada; no entanto, o nascer do dia não traz consigo apenas a ideia de luz, mas também a de movimento ascendente coletivo, que se afirma claramente na forma verbal «emergimos». Na verdade, se o dia se levanta, nós, agora livres, também. 

Elisabete Bárbara

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *