ARTIGO DE OPINIÃO: A poesia de Maria do Rosário Pedreira

07/03/2024 16:00

Março é o mês da Poesia e é o mês em que se comemora o Dia da Mulher. Também por isso, dedicamos este nosso texto à poesia de uma autora contemporânea: Maria do Rosário Pedreira.

Esta escritora, que se dedica atualmente à edição de livros de literatura portuguesa, estreou-se no campo das letras com ficção juvenil, influenciada pela sua profissão durante alguns anos como professora. Passou pelo romance, o conto e as crónicas. É autora de letras de muitos fados, cantados por grandes fadistas como, apenas um exemplo, Carlos do Carmo.

Neste texto, dedicado à poesia, vamos apresentar uma possível leitura de um dos seus numerosos poemas do livro Poesia Reunida, que se intitulaArte poética”. Neste poema, como aliás nos demais que constituem esta antologia, apercebemo-nos, facilmente, de algumas características da sua poesia e da de outros poetas da atualidade que, embora respeitando a tradição literária, adotam uma atitude mais livre e mais discursiva que se traduz regularmente numa indistinção entre poesia e prosa, pelo menos em termos formais.

Neste poema, o «eu» lírico começa por afirmar as diferenças entre um romance e um poema, procurando mostrar que o processo de criação de um e do outro se distingue.

No romance, uma chávena é uma chávena, enquanto num poema a chávena pode ser metaforicamente a «concha de uma mão» de alguém que se ama.   O «eu» que fala no texto e o «tu» a quem se dirige podem trazer as chávenas, objetos utilitários, para a mesa de jantar do dia a dia, no quotidiano da vida, e falarem da lata de café que está vazia, trivialidades, enquanto os seus pensamentos se ocupam de questões como a velhice e a falta de tempo para ler todos os livros que ainda ficaram por ler.

Na arte poética, aqui sobrevalorizada, não precisam nem das chávenas nem do café.  A boca de um e a mão do outro são suficientes para manter o amor, olhando-se, lendo o que está escrito nos olhos de cada um, dispensando outros livros, vivendo a dádiva da vida, cada dia.

A chávena de café pode entornar-se num poema, se no romance o poeta for uma personagem. No poema, mesmo manchado, a chávena de café entornado deixa de ser o que era porque se transfigura na «concha de uma mão», que é o aconchego que pode ser bebido sem se beber, num interessante jogo de palavras: «beber o mundo em maravilha».

A linguagem poética permite esta ousadia de falar sobre uma coisa querendo dizer outra. A poesia não necessita de jogos rimáticos, embora se possa servir deles, nem da métrica, medida com os dedos nas escolas. O mais importante é saber ler também com os ouvidos, percebendo que o ritmo, a cadência e a melodia servem para dar sentido às palavras do poeta, aos sentidos escondidos da linguagem poética, como um todo, num processo de alquimia.

O amor é o bastante para fazer um poema.  

O amor é o bastante para continuar a viver.

Vivam os poetas.

Arte Poética

Num romance, uma chávena é apenas

Uma chávena – que pode derramar

café sobre um poema, se o poeta,

bem entendido, for a personagem.

Num poema, mesmo manchado

de café, a chávena é certamente a

concha de uma mão – por onde eu

bebo o mundo em maravilha, se tu,

bem entendido, fores o poeta.

No nosso romance, não sou sempre

eu quem leva as chávenas para a mesa

a que nos sentamos à noite, de mãos

dadas, a dizer que a lata do café chegou

ao fim, mas a pensar que a vida é

que já vai bastante adiantada para os

livros todos que ainda pensamos ler.

No meu poema, não precisamos de café,

para nos mantermos acordados: a minha

boca está sempre na concha da tua mão,

todos os dias há páginas nos teus olhos,

escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.

Ana Albuquerque

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