Março é o mês da Poesia e é o mês em que se comemora o Dia da Mulher. Também por isso, dedicamos este nosso texto à poesia de uma autora contemporânea: Maria do Rosário Pedreira.
Esta escritora, que se dedica atualmente à edição de livros de literatura portuguesa, estreou-se no campo das letras com ficção juvenil, influenciada pela sua profissão durante alguns anos como professora. Passou pelo romance, o conto e as crónicas. É autora de letras de muitos fados, cantados por grandes fadistas como, apenas um exemplo, Carlos do Carmo.
Neste texto, dedicado à poesia, vamos apresentar uma possível leitura de um dos seus numerosos poemas do livro Poesia Reunida, que se intitula “Arte poética”. Neste poema, como aliás nos demais que constituem esta antologia, apercebemo-nos, facilmente, de algumas características da sua poesia e da de outros poetas da atualidade que, embora respeitando a tradição literária, adotam uma atitude mais livre e mais discursiva que se traduz regularmente numa indistinção entre poesia e prosa, pelo menos em termos formais.
Neste poema, o «eu» lírico começa por afirmar as diferenças entre um romance e um poema, procurando mostrar que o processo de criação de um e do outro se distingue.
No romance, uma chávena é uma chávena, enquanto num poema a chávena pode ser metaforicamente a «concha de uma mão» de alguém que se ama. O «eu» que fala no texto e o «tu» a quem se dirige podem trazer as chávenas, objetos utilitários, para a mesa de jantar do dia a dia, no quotidiano da vida, e falarem da lata de café que está vazia, trivialidades, enquanto os seus pensamentos se ocupam de questões como a velhice e a falta de tempo para ler todos os livros que ainda ficaram por ler.
Na arte poética, aqui sobrevalorizada, não precisam nem das chávenas nem do café. A boca de um e a mão do outro são suficientes para manter o amor, olhando-se, lendo o que está escrito nos olhos de cada um, dispensando outros livros, vivendo a dádiva da vida, cada dia.
A chávena de café pode entornar-se num poema, se no romance o poeta for uma personagem. No poema, mesmo manchado, a chávena de café entornado deixa de ser o que era porque se transfigura na «concha de uma mão», que é o aconchego que pode ser bebido sem se beber, num interessante jogo de palavras: «beber o mundo em maravilha».
A linguagem poética permite esta ousadia de falar sobre uma coisa querendo dizer outra. A poesia não necessita de jogos rimáticos, embora se possa servir deles, nem da métrica, medida com os dedos nas escolas. O mais importante é saber ler também com os ouvidos, percebendo que o ritmo, a cadência e a melodia servem para dar sentido às palavras do poeta, aos sentidos escondidos da linguagem poética, como um todo, num processo de alquimia.
O amor é o bastante para fazer um poema.
O amor é o bastante para continuar a viver.
Vivam os poetas.
Arte Poética
Num romance, uma chávena é apenas
Uma chávena – que pode derramar
café sobre um poema, se o poeta,
bem entendido, for a personagem.
Num poema, mesmo manchado
de café, a chávena é certamente a
concha de uma mão – por onde eu
bebo o mundo em maravilha, se tu,
bem entendido, fores o poeta.
No nosso romance, não sou sempre
eu quem leva as chávenas para a mesa
a que nos sentamos à noite, de mãos
dadas, a dizer que a lata do café chegou
ao fim, mas a pensar que a vida é
que já vai bastante adiantada para os
livros todos que ainda pensamos ler.
No meu poema, não precisamos de café,
para nos mantermos acordados: a minha
boca está sempre na concha da tua mão,
todos os dias há páginas nos teus olhos,
escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.
Ana Albuquerque