ARTIGO DE OPINIÃO: A plebeia e a rainha

19/05/2023 18:30

Pego, hoje, em duas personagens femininas de um dos romances mais emblemáticos da obra saramaguiana – Blimunda e Maria Ana Josefa, de Memorial do Convento (1982).

Ambas são mulheres, mas muito distintas nos seus portes, nos seus hábitos, nas suas convicções, nos seus sonhos, embora sejam tratadas de forma igualmente genial por José Saramago.

A rainha, vinda de Áustria, conheceu o marido, o rei D. João V, na tabela real, através de um retrato favorecido, pago a um hábil pintor da corte. Traz com ela um cobertor de penas, bem quente, onde se esconderá, qual toupeira, nas noites de inverno portuguesas.

Duas vezes por semana, religiosamente, o rei vai ao quarto da rainha, que o espera suada e fria, ansiosa por cumprir rapidamente o seu dever conjugal, pois não há meio de conseguir dar um filho ao esposo pujante e viril como bem o tem provado com a madre Paula do Convento de Odivelas, mãe dos meninos de Palhavã.

Suada e triste, fica a rainha na sua alcova, depois do ato. Imobilizada na cama vinda da Holanda, mas nem por isso com menos percevejos que as dos outros lisboetas, reza, reza muito para que a semente deixada no vaso pegue e seja desta que dê fruto. Como nos sonhos ninguém manda, sonhará nessa mesma noite com o cunhado, mais jovem. Talvez com esse fosse mais fácil.

Num outro lado do palácio, o rei sonhará com um convento que se erguerá em Mafra. Será o maior monumento nacional edificado. Ficará na História como o seu construtor. E exige que seja cortada uma pedra única que servirá para a varanda de onde abençoará a basílica e os seus súbditos ajoelhados no terreiro. Assim seja, manda o rei e está mandado.

Num outro patamar da narrativa, onde a realidade e a ficção se misturam, Blimunda assiste ao auto de fé onde sua mãe desfila no cortejo dos sentenciados. Irá deportada para Angola, e dela mais nada saberemos, excomungada por práticas de feitiçaria. Ao lado da rapariga do povo está um homem maneta, perdera a mão esquerda na guerra e andava pelas ruas da cidade a ver se arranjava trabalho para matar a fome e não queria perder a oportunidade de assistir a tais apreciados festejos, num domingo quente e luminoso. 

Era de Mafra, o antigo soldado, agora inválido. O seu pai haveria de vender por uma pechincha as terras do alto da Vela, que bem falta lhe fariam para o sustento da casa. Ordem do rei, como bem sabemos, que aí levantaria um convento, em promessa do nascimento de um herdeiro. Saiu-lhe, afinal, uma menina, mas o monarca era um homem de palavra.

Este homem seguirá a rapariga não sabe por que razões alquímicas. Talvez a mãe dela lhe tenha feito um feitiço com o olhar, pois a boca levava amordaçada. Nunca se tinham visto, nem através de retratos, pois nunca ninguém os pintara ou pintará. Vai atrás dela até casa. Senta-se num banco. Come a sopa que ela lhe dá, serve-se da sua tigela, da sua colher e da sua enxerga. Assim, sem mais. Blimunda sangra e com o seu sangue abençoa o peito de Baltasar com uma cruz sobre o coração. Tinham-se despido e deitado com a naturalidade de dois corpos jovens e famintos de carícias. Unidos para a vida e para a morte, sabemo-lo nós. 

Ao longo do enredo, estas duas mulheres jogarão papéis muito distintos e contraditórios. Blimunda tem a capacidade e o dom de ver as pessoas por dentro. Maria Ana permanecerá cega em todos os sentidos. A sua vida será uma sombra que a aperta e lhe sufoca os desejos. Nasceu para morrer, dirá um dia a sua filha, a caminho de um casamento aprazado como do dela. Os seus destinos serão iguais.  

De um lado, temos a força, a determinação, a energia de uma mulher completa, sem constrangimentos de qualquer ordem. Do outro, uma mulher mumificada em vida, que cumpre um papel que lhe foi destinado e se acomoda, rezando as suas novenas, sem vontade. Blimunda recolhe as vontades dos que as têm para que a passarola voe nas alturas. Maria Ana nunca teve essa nuvem sobre o estômago, ficará na História como a esposa de um rei magnânimo, fazendo parte da lista das suas riquezas e foram muitas.

Blimunda andou nove anos pelas estradas de Portugal à procura do seu homem. Não desistiu. Encontrou-o no mesmo sítio onde o tinha encontrado pela primeira vez. Era um dos sentenciados com destino à fogueira. Por onde andou, afinal, durante estes longos anos? Recolheu a nuvem fechada que só ela via sobre o seu estômago e ficou com ele para sempre.

A plebeia ficará na história de cada um de nós pela magia e pelo encantamento do seu olhar, pelo despojamento e pela inocência, pela riqueza da sua vida intensa, verdadeira apesar de ficcionada até ao limite. 

É sempre um gosto apresentá-la aos meus alunos do 12.º ano.

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